O psicanalista contemporâneo se debruça cuidadosamente sobre a experiência clínica, verifica as teorias implícitas que orientam sua observação, desconfia de teorias totalizantes e sofre de uma imensa aversão a dogmatismos. Conhece, na medida do que lhe é possível, os autores clássicos e os valoriza quando o auxiliam na clínica. Gosta de problematizá-los e se incomoda com quem os reverencia. O psicanalista contemporâneo transita entre a observação do intrapsíquico e a participação no intersubjetivo, toma os afetos como importantes formas de revelação, não se intimida frente às dificuldades decorrentes de áreas com déficit de representação usa sua própria mente para ajudar a representar o que o paciente não pode. O conhecimento de seu próprio funcionamento mental no campo analítico é sua bússola. Considera sua atividade como uma arte/ciência em que todos os fatos devem ser levados em conta, sentindo-se incomodado com "verdades" e juízos “certo/errado" que obstruem a capacidade de observação.
As considerações efetuadas devem ser relativizadas pois o homem/mulher contemporâneos - como peixes dentro da água - não têm acesso ao que seria visto de fora. Preenchem esse vácuo com exercícios adivinhatórios. Poderia considerar-se o que ocorre ao observarmos as estrelas. Sua visão está a nosso alcance "contemporâneo" mas sabemos que aquilo que vemos ocorreu há milhões de anos, o tempo que a luz percorreu o espaço até atingir nossa retina. Ao mesmo tempo devemos tentar adivinhar o que está vindo e ainda não chegou, sabendo que sua percepção dependerá também daquilo que estamos fazendo com o que vimos (2). O contemporâneo, portanto, é produto do passado, e também do futuro.
Essas ideias influenciam a visão de como, cada um de nós, verá o contemporâneo de 1923 (O Ego e o Id) 100 anos após e conectá-lo com o misterioso e escuro futuro. Como o psicanalista que vive o passado de seu paciente (e dele mesmo), no campo analítico, ao mesmo tempo que vislumbra emanações do futuro.
Sonho e não-sonho
Através do sonho (da noite e da vigília), ou melhor, do relato emocionado do sonho, o analista entra em contato com a rede simbólica do pensamento de seu paciente. Mas, como sabemos o analista não vai além do umbigo do sonho. A última fronteira. O que haveria além dela? O biológico se coloca através das pulsões, das fantasias originárias, das preconcepções, dos tropismos, fenômenos que buscam desesperadamente o objeto para que o ser se torne humano.
As experiências emocionais - o encontro íntimo com o outro - podem instalar-se na mente inicial como registros que não puderam ser simbolizados. Seus traços farão parte do inconsciente não reprimido, como mente arcaica ou primordial.
Esses registros constituem os alicerces, fundamento para a constituição da mente simbólica. Por outro lado, experiências emocionais vivenciadas como traumáticas podem destruir a incipiente capacidade de simbolização. A cisão defensiva faz com que seus resíduos sejam evacuados, por exemplo através de conglomerados constituídos por partes do aparelho mental, constituindo-se objetos bizarros, próprios do funcionamento psicótico. Esses aspectos fazem parte de um espectro de manifestações que pode ser agrupada sob a denominação não-sonhos (Cassorla, 2005). Quando eles se manifestam, no campo analítico, o fazem através de descargas no corpo e em ato, transformações em alucinose e dramatizações estanques.
Impõe-se considerar que sonhos incluem camadas de não-sonho da mente primordial, camadas que escondem a terra original, a terra do “não está lá” porque não temos acesso simbólico a ela. O modelo do palimpsesto nos ajuda a imaginar a sobreposição de camadas, como gradientes de representação (3)
Os aspectos assinalados: déficit na simbolização, não sonhar, compulsão à repetição, pulsão de morte, mente primordial, inconsciente não reprimido, fazem parte de um conjunto que levou Freud a perceber que o modelo do sonho - a primeira tópica - teria que tornar-se mais complexo. Resultou o modelo estrutural - segunda tópica - com as instâncias Ego, Id e Superego. Esse modelo provocou, também, uma mudança na compreensão do caráter, objeto principal deste estudo.
Especulações sobre o caráter
A etimologia da palavra caráter indica marcas, sulcos, que se fixam na matéria. Impõe-se a hipótese de que existe uma parte inicial do caráter, irredutível, uma camada que não sofreria transformação. Esse caráter inicial seria o núcleo constante, a terra sobre a qual crescem as diversas culturas (neurose, psicose, perversão, somatizações, e os próprios distúrbios do caráter). Acrescento: de onde se desenvolve e é atacada a vida de cada um. É a célula base de um conglomerado constituído por derivados da pulsão, o resultado das sublimações e as defesas do tipo formação reativa, como Freud (1905) nos ensina nos "Três ensaios". Mas não só isso, como veremos adiante.
O caráter se manifesta através da forma como a pessoa é. Observa-se em seus comportamentos espontâneos não pensados. Esse arcaico estaria aquém das neuroses de caráter e dos transtornos de personalidade. Estes fatos resultariam de organizações defensivas que, inevitavelmente, se articulam com esse ele.
Podemos imaginar que o mais antigo desse palimpsesto, o suposto irredutível do caráter, vincula fatores constitucionais com as fantasias inconscientes dos pais em relação a seu bebê. Estas fantasias são, por sua vez, transformações de marcas das gerações anteriores e incluem experiências filogenéticas, registradas e não significadas. Refiro-me a aspectos transgeracionais que são transmitidos através de identificações das quais é impossível escapar. Registros que determinam o destino, para aquém e além de qualquer organização neurótica, psicótica e perversa, como se fosse um correlato psíquico da impressão digital humana com seu idioma particular, na analogia proposta por Bollas (2019).
Seria possível dar significado a certos aspectos desse destino. Existiria um certo grau de liberdade, associado a experiências emocionais subsequentes, que permite modificá-lo dando-lhe significado retroativo através do sonhar. Mas persistem comportamentos que se manifestam como repetição não pensada.
A proposta metapsicológica envolve a constituição da mente supostamente “normal”, ainda que saibamos que pode ocorrer uma patologia intrínseca ao caráter cono nos mostraram Freud, Abraham, Reich, Fenichel e outros, que não serão abordados neste estudo. As ideias envolvem riscos ideológicos e técnicos. Entre estes: considerar não analisável algo que poderia ser sonhado por outro analista. Temos que lidar com essa possibilidade.
Podemos observar, no estudo clínico, certo tipo de estruturação do psiquismo que nos leva a imaginar que essa é a "forma de ser" da pessoa, para aquém de sintomas ou comportamentos que refletem transtornos do caráter ou da personalidade. Por se tratar de algo egossintônico - isto é, uma estruturação do Ego que se mantém em equilíbrio razoável com as demais instâncias - o analista pode acomodar-se, atacando sua capacidade de investigar como essa estruturação se mantém. .
A estabilidade faz com que usemos o termo "pessoa de caráter", para quem que se apresenta em forma coerente e verdadeira. Usamos também o termo pessoa íntegra, isto é, inteira, que se contrapõe ao "mau caráter", o “sem caráter". O termo "filho da puta" revela a intuição popular sobre voracidade invejosa e falta de função estruturante paterna. Em situações de evidente falso self manifesta-se a artificialidade da formação reativa.
Como veremos adiante, as primeiras identificações (que constituem o caráter inicial) seguem o modelo canibalístico - "sou aquilo que ingiro". Podemos ampliar a ideia considerando a fantasia de entrar dentro do objeto, isto é, "como e sou comido", tornando-me igual ao objeto inicial. Os primórdios da mente do bebê decorreriam desse tipo de identificação, com todas as instâncias do aparelho mental do objeto. O modelo do imprinting, da etologia, se torna produtivo.
As ideias sobre caráter, ainda que não sistematizadas, aparecem em vários momentos da obra freudiana. Um parágrafo póstumo (Freud, 1941) indica seu contínuo interesse pelas primeiras identificações: "É interessante que, em conexão com experiencias primitivas, quando contrastadas com experiencias posteriores, todas as variadas reações a elas sobrevivem, naturalmente inclusive as contraditórias. Em vez de uma decisão, que teria sido o desfecho mais tarde. Explicação: fraqueza do poder de síntese, retenção da característica dos processos primários". (p. 335)
Uma definição de caráter se encontra nos Três Ensaios (Freud, 1905); “O que chamamos "caráter" de um indivíduo é, em boa parte, construído com o material de excitações sexuais, e se compõe de instintos fixados desde a infância, de construções adquiridas através de sublimação e daquelas destinadas a refrear eficazmente impulsos perversos reconhecidos como inaproveitáveis (p165-166).
A "normalidade" do caráter ou seu transtorno dependerá da percepção interna e/ou do ambiente. Freud também usa o termo "sadio": "... atividade sexual infantil deixam profundos traços (inconscientes) de impressões na memória da pessoa, determinam o desenvolvimento de seu caráter, quando ela permanece sadia, e a sintomatologia de sua neurose quando ela adoece após a puberdade”. (negrito meu).(p. 166).
Nos trabalhos freudianos anteriores à segunda tópica caráter é definido a partir da transformação das pulsões em traços caracterológicos, "ora sem maior deformação em seu objeto e finalidade (como a gula em sequência à avidez oral do bebê), outros como sublimação por substituição de sua fonte objeto e finalidade primitivos por outros mais evoluídos (gula por fome de saber) e outros como formação reativa (como a limpeza contra o desejo de sujar)". (Baranger, 1956). São clássicas as descrições de traços de caráter associados às fases libidinais (Abraham, 1965). Temos que cuidar-nos para o reducionismo dessas classificações, que podem mascarar a complexidade dos fatos, como nos alerta Meltzer (1979) e o próprio Abraham.
Com o advento da segunda tópica perde-se a primazia das pulsões para a abordagem dos mecanismos defensivos utilizados pelo Ego: “…esses mecanismos não são abandonados após terem assistido o ego durante os anos difíceis de seu desenvolvimento. (....) estes se fixam em seu ego. Tornam-se modalidades regulares de reação de seu caráter, as quais são repetidas durante toda a vida, sempre que ocorre uma situação semelhante à original" (Freud,1937, p.270)
No "Ego e o Id" Freud (1923) introduz a ideia de um inconsciente não reprimido. “…Uma parte do Ego - e sabe Deus quão importante é ela - pode ser ics" (p.22). Aqui se encontra o caráter acompanhando outros fatos que "só Deus sabe". A referência divina nos abre para a ideia de infinito, um desconhecido sendo criado e impossível de ser atingido.
Nesse texto Freud, utilizando o modelo da melancolia, propõe que o caráter do Ego é um precipitado dos investimentos objetais abandonados que contêm a história dessas escolhas de objeto. Como vimos, na primitiva fase oral o investimento objetal se confunde com identificação. Os povos primitivos adquirem as características do animal incorporado como alimento que persistem no caráter de quem o devora. Essa a origem da refeição totêmica, especulação que indica a assunção do caráter do pai morto. Dessa forma o caráter vai sendo formado antes do abandono do objeto. "... a mudança do caráter poderia sobreviver à relação objetal e, num certo sentido, conservá-la" (p.37).
As identificações com objetos idealizados - incluindo o pai da pré-história pessoal - também será direta, imediata. Entre em jogo a filogênese, a herança arcaica do indivíduo, especulada em Totem e Tabu, resultando nas limitações éticas do complexo de édipo e na superação da rivalidade entre os irmãos e semelhantes. As identificações com os pais complementam essa identificação primária, assim como outras identificações posteriores.
Lembremos que o Superego não é apenas um resíduo das primeiras escolhas objetais pois também é uma formação reativa a elas. Além de "ser igual ao pai" há proibições, aspectos que só pertencem a ele. Nesse assoalho também se assentarão as características da cultura.
Freud (1923) retoma a questão da hereditariedade: " As vivencias do Ego parecem inicialmente perdidas para a herança, mas quando se repetem com frequência e força suficientes, em muitos indivíduos que se sucedem por gerações, elas como que se transformam em vivencias do id, experiências cujas impressões são mantidas hereditariamente. Assim o Id hereditário alberga resíduos de incontáveis existências de Ego, e, quando o Ego cria o Superego a partir do Id, talvez faça aparecer de novo anteriores formas de Ego, proporcione-lhes uma ressurreição" (p.48).
Sabemos que Freud tem sido criticado por essa suposta visão lammarckiana. No entanto, as recentes descobertas sobre a epigênese (herança de caracteres adquiridos durante a vida) se coadunam com suas hipóteses. Aqui, portanto, entram em jogo características adquiridas através de vivências ambientais subsequentes que se insertam nos aspectos transgeracionais.
Lembremos que, ao abandonar o objeto, a libido objetal se transforma em libido narcisica, dessexualizada, que será a base das sublimações. Neste momento já identificamos aspectos importantes do caráter: identificações iniciais, formações reativas e sublimações, ao qual agora devemos acrescentar outros mecanismos de defesa do Ego.
Green (2008) propõe que nos voltemos para o caráter como modelo clínico de base. "Trata-se do efeito combinado de diferentes partes do aparelho psíquico. A referência às pulsões remete ao Id, destacando a "parcialidade" das fixações pulsionais. O envolvimento do Ego está presente na tendência a unificação e na orientação em direção a sublimação. Com relação ao Superego seu impacto é duplo: num nível mais elementar pelas referências às formações reativas, num nível mais geral para o apoio sobre o papel dos mecanismos de identificação e, nesse último caso, da identificação do superego dos pais. Assim a partir de uma noção simples, toda a complexidade e heterogeneidade do aparelho psíquico se apresenta nesses processos, revelando aquilo que aparece como uma marca da individualidade. Evidentemente restaria ainda considerar o papel desempenhado pela ideologia de uma certa cultura -o Superego cultural - no encorajamento ou reprovação de certos traços de caráter". (p. 181-182).
Sobre este último aspecto voltemos a Freud (1933). "Quanto mais o desenvolvimento da angústia puder ser limitado a um mero sinal, tanto mais o Ego despenderá em ações defensivas que equivalem a uma vinculação psíquica do reprimido, tanto mais o processo também se avizinhará de uma elaboração normal, certamente sem atingi-la. Vocês já imaginam, sem dúvida, que essa coisa de difícil definição a que chamamos "caráter" deve ser atribuída ao Ego. Algo que compõe esse caráter já apreendemos. Sobretudo a incorporação, como Superego, da inicial instancia parental, talvez a mais decisiva e importante, depois as identificações com os dois genitores da época posterior e com outras influentes pessoas e as mesmas identificações como precipitados de relações objetais abandonadas. E acrescentemos, como contribuições nunca ausentes na formação do caráter, as formações reativas, que o Ego adquire primeiramente em suas repressões e, depois, nas rejeições de impulsos instintuais indesejados, por meios mais normais" (p. 236).
Conclusões
A descrição minuciosa da segunda tópica, em "O Ego e o Id", nos estimula a investigar em profundidade aspectos arcaicos que se manifestam através do caráter. Estamos frente a um desafio, na psicanálise contemporânea, que nos impele a conhecer fatores que vão para além da dicotomia sonho/ato.
Referencias
(1) Este trabalho resume alguns aspectos de outro texto a ser publicado na Revista Brasileira de Psicanálise no primeiro numero de 2024
(2) Este modelo foi inspirado em Agamben (2009).
(3) Todas as páginas do palimpsesto de comunicam entre si e com suas raízes comuns. Por isso, quando interpretamos um sonho também mobilizamos aspectos não sonhados. E, quando simbolizamos não-sonhos também transformamos áreas de sonho.
Bibliografía
Abraham, K (1965). Teoria psicanalítica da libido. Rio: Imago (trabalho original publicado em 1927)
Agamben, G. (2009). O que é contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos
Baranger, W (1956). Breve resumen acerca del concepto de carácter en la obra de Freud. Revista Uruguaya de Psicoanálisis (en línea I 3).
Bollas, C. (2019). Forces of Destiny. Psychoanalysis and Human Idiom. Routldege.
Cassorla, R. M. S. (2005). From bastion to enactment: The ‘non-dream’ in the theatre of analysis. International Journal of Psychoanalysis 86:699-719. (Revista de Psicoanálisis (Buenos Aires) 62:137-161, 2010).
Freud, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Ed. Standard Brasileira, vol 7.
Freud, S. (1923). O ego e o id. Obras Completas vol. 16. São Paulo, Cia. das Letras, 2011, p. 13-74.
Freud, S. (1933). Novas conferências introdutórias à psicanálise. Obras completas, vol. 18; São Paulo, Cia. das Letras, 2010.
Freud, S. (1937). Construções em análise In Ed. Standard Brasileira vol. 23
Freud, S. (1941). Achados, ideias e problemas. Ed. Standard Brasileira vol. 23.
Green A. (2008). Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio: Imago (original em 2002).
Meltzer, D (1979). Estados sexuais da mente. Rio: Imago (original 1973)
Autor
Roosevelt Cassorla, SBPSPC (Sociedades Brasileiras de Psicanálise de São Paulo e Campinas)
Descriptores: PSICOANALISTA / SUEÑO / TRANSGENERACIONAL / IDENTIFICACION / CARACTER / ELLO / SUPERYO
Candidato a Descriptor: CONTEMPORANEO
Directora: Mirta Goldstein de Vainstoc
Secretario: Jorge Catelli
Colaboradores: Claudia Amburgo, José Fischbein, María Amado de Zaffore
Los descriptores han sido adjudicados mediante el uso del Tesauro de Psicoanálisis de la Asociación Psicoanalítica Argentina
Presidenta: Dra. María Gabriela Goldstein
Vice-Presidente: Dr. Carlos Federico Weisse
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