O conceito de narcisismo foi desenvolvido por Freud desde cedo aparecendo em 1907, nas cartas a Jung, desde o ponto de vista do desinvestimento dos objetos e o retorno da libido ao ego nas psicoses. Mais tarde, retoma o conceito em Schereber, no texto sobre Leonardo e em Totem e tabu abordando em cada um deles o tema em diferentes perspectivas. A análise mais completa se dá em 1914 em Uma introdução ao narcisismo (Freud, 1914/1980), em termos da construção de um eu capaz de investir amorosamente em si, nos objetos e nos ideais. Mais especificamente, diz respeito a organização e aos recursos do si mesmo e das fronteiras entre o eu e o outro. Dessa forma, o narcisismo em Freud adquiriu o estatuto de uma estrutura que fundamenta a subjetividade, na medida em que é através dos investimentos maternos no bebê que se dão as condições para a formação de uma organização narcísica que permita ao infante distinguir o si mesmo como um espaço próprio a ser investido, diferente do outro como alguém em quem se pode investir.
No entanto, trata-se de um conceito complexo, pois pode-se entender da postulação freudiana uma dupla perspectiva: em uma perspectiva ontológica e do ponto de vista da psicopatologia. A primeira se refere a unidade do ego, ao desejo de ser, quando essa estrutura se forma a partir das condições dadas pelo objeto materno. Por outro lado, as falhas da estruturação do narcisismo indicam a outra perspectiva, ou seja, a existência do amor de si levado até a autossuficiência e a glorificação da própria imagem, indicando uma faceta negativa do narcisismo.
É dentro deste segundo contexto que se insere o artigo de Pierre Hadot (1976) publicado na Nouvelle Revue de Psychanalise, em um número dedicado ao narcisismo
, intitulado O mito de Narciso e sua interpretação por Plotino. Neste, aborda a visão do filósofo romano Plotino, um dos primeiros filósofos a interpretar o mito, dizendo que Narciso é o exemplo do homem apegado a imagem e aos reflexos do belo. O autor contrapõe a figura de Ulisses de Homero à Narciso. Ulisses vence as sereias porque sabe que são puro reflexo, que a beleza de uma e as delicias de outra vão leva-lo à morte. Assim, retorna ao inteligível que é a verdadeira fonte de beleza, enquanto Narciso não consegue escapar da beleza sensível. Ulisses é o Narciso que acorda de uma ilusão. Desde Platão, o mundo sensível é uma cópia, tal qual descrito no mito da caverna; os indivíduos ficariam aprisionados nas aparências, só saindo desse confinamento se ingressassem no mundo inteligível.
Ocorre que a perspectiva negativa do narcisismo, se tornou uma marca efetiva das subjetividades, de forma que essa noção acabou por se transformar em um conceito fundamental para se entender a cultura e as subjetividades desde a segunda metade do século XX, se inscrevendo de diferentes formas no espaço social. De minha parte, entendo que neste século o narcisismo se desdobrou na destrutividade como marca do espaço social, das subjetividades, na relação consigo próprio, dos sujeitos entre si e com o meio ambiente. Assim, tanto o narcisismo quanto a destrutividade se tornam os elementos centrais de nosso mal-estar. Diante dessas questões, cabe a reflexão: que elementos da metapsicologia permitem uma compreensão desse estado de coisas? esses são os temas que pretendo tocar brevemente neste texto.
Dada a pregnância do narcisismo e da destrutividade no espaço social, outros discursos teóricos além da psicanálise como a sociologia, história e filosofia também se ocuparam deste tema. Primeiramente, vou me referir a alguns autores no terreno das ciências sociais onde o narcisismo foi tematizado para posteriormente articular com postulações psicanalíticas de Freud e André Green.
Em 1974, Richard Sennet sociólogo e historiador americano publica O declínio do homem público no qual afirma que as pessoas sem esperança de melhorar suas vidas nas coisas que realmente importam na medida em que entenderam que a política já não gera uma luta para mudança social, se voltaram para suas vidas pessoais e a partir daí o que passou a ser relevante é a melhora pessoal. De forma geral, isto acarretou o esvaziamento do espaço público, demonstrando que este passou a ser um espelho do self.
Christopher Lasch historiador americano em 1979 na mesma linha que Sennett e avançando no tema escreve A cultura do narcisismo, afirmando que as pessoas passaram a viver o momento para si o que se tornou a paixão dominante. Dessa forma, nem o passado nem o futuro interessam, perdeu-se a dimensão da continuidade histórica, o sentido do pertencimento a uma sequência de gerações originadas no passado e que se prolongaria no futuro.
Os meios de comunicação de massa convertem os cidadãos em um conglomerado de fãs, conferindo substância aos sonhos narcisistas de fama e gloria, da necessidade de admirar e ser admirado, maios do que ser estimados. Mais do que ser, importa parecer ser. A imagem é o mais importante. Nas artes a performance e a fotografia são as artes maiores. A aparência é o ideal a ser seguido e com isso fabrica-se uma sociedade do espetáculo como uma expressão de G. Debord, Dentro desse contexto, o consumo como estilo de vida, que promete preencher o vazio leva a criação de pseudonecessidades. A necessidade de se manter sempre belo e jovem traz como consequência o terror a velhice e a morte. Por se sentir sempre aquém de uma imagem glorificada, sobrevém os sentimentos de vazio, depressão e alteração profunda da autoestima. O autor afirma que a aparência do êxito se tornou mais importante que o êxito, na medida em que a autoestima depende da aclamação pública e do reconhecimento de seus atributos pessoais. Supõe-se que ser admirado e ter experiências intensas preencherão o vazio, sem a necessidade de laços de compromisso e de solidariedade. A liberação da sexualidade desvinculada do amor, por exemplo, não encontrou a plenitude esperada.
Como uma radicalização do narcisismo presente nos sujeitos, o economista americano Fukoyama enunciou que o neoliberalismo é a forma final de governo e, diante da queda das utopias, decreta o fim da história. A modernidade era caracterizada pela busca do devir emancipatório e a busca racional da verdade juntamente com a ideia de progresso através do desenvolvimento científico. Neste contexto se inseriu o individualismo que continha uma dimensão de projeto e desejo no qual o destino estava nas próprias mãos. No entanto, o esgotamento dos enunciados da modernidade, ao contrário das teses de Fukoyama, demonstraram que deixando a dimensão de projeto, o que ocorreu foi um sujeito vazio, ausente de dramaticidade nas quais o outro é desinvestido dada a presença da pulsão de morte. (Rojas, M. & Sternbach, S, 1994)
Todas essas abordagens a respeito das marcas narcisistas das subjetividades contemporâneas remetem a pensar na face mortífera e destrutiva do narcisismo e, também, de que forma a destrutividade se insere na cultura atual. Alain Badiou (2007) faz no início do sec. XXI uma reflexão sobre a questão da imagem na cultura atual. Afirma que a promessa da modernidade que seria a revolução cientifica baseada no excepcional progresso da primeira década do século que contava com Einstein, Freud, Frege, Proust e Joyce não se realizou, se esvaneceram porque o século XX se interessou pela destruição, a superioridade dos ricos e da economia sobre todo o resto. A ideia de crime e de real – o paradigma da guerra - a guerra que acabasse com a guerra é o que compõe a concepção do autor. Então, os sujeitos são semblante, são aparência mais do que qualquer outra coisa e, na verdade, a paixão do século foi pela destruição. O autor afirma que além do semblante surge a necessidade de fazer semblante e atrás disso está a destruição. Também se observa esse aspecto através da literatura. Em Os anos, Annie Ernaux (2021) demonstra através das sucessivas lembranças históricas o incremento da destrutividade.
Em outra perspectiva, Sennet (1974) afirma que a internet é usada como vitrine mais do que instrumento de comunicação e encontro com o outro, está a serviço da simplificação do pensamento e de falta de complexização. Entendo que a postulação de Senett e de Badiou vão ao encontro do conceito de pós verdade: através da tecnologia mentiras são disparadas em massa cujo objetivo principal é o ataque a capacidade de pensar. No mundo de pós verdade o que interessa são as versões forjadas no lugar da veracidade das informações que tem como consequência o ódio por tudo aquilo que representa o diferente. Entendo que no espaço social, a ligação entre narcisismo e destrutividade se observa justamente nesse ódio em relação ao outro que representa o diferente. Minha proposição é justamente a de que nosso tempo é marcado pela radicalização do narcisismo em termos da destrutividade em forma de ódio em relação ao diferente: “a tudo que não sou eu”.
No campo da psicanálise, o narcisismo foi amplamente desenvolvido depois de Freud a partir de 1940 iniciando com Kernberg e Kohut definido a estrutura borderline e a personalidade narcisista respectivamente. Depois deles, outros autores se dedicaram e se dedicam ao tema.
A transformação do autoerotismo em narcisismo está na dependência da constituição de um ego que se forma a partir da ação identificante da mãe que considera o bebê his majesty the baby (Freud, 1914). A supervalorização do filho feita pela mãe permite à criança identificar-se com essa imagem valorizada como sendo a sua e esta será tomada como objeto o que vem a ser o narcisismo. A formação do ego e o narcisismo são processos concomitantes, poder investir em si não é viável sem que haja o ego e este é viabilizado pelo outro. A mãe ofereceria uma primeira totalização da imagem de si que se opõe à dispersão originária e possibilita uma contenção para o psiquismo e para o corpo é o que constitui o narcisismo. Essa matriz de si mesmo é fundamentalmente corporal para Freud. Então, o ego é lugar de contenção, identidade, corpo e imagem de si.
A mãe suficientemente boa de Winnicott é fundadora de uma estrutura enquadrante no bebê no sentido do enquadre, (que eu leio como contenção) que representa o contato com seu corpo. A estrutura enquadrante se alcança quando o amor do objeto é seguro e capaz de desempenhar o papel de continente do espaço representacional (Green, 1993a). Entendo que na base do entendimento da estrutura enquadrante, está a possibilidade de o bebê se identificar com essa capacidade de conter-se, a possiblidade de auto satisfazer-se através da alucinação desenvolvendo-se a capacidade ligadora do ego, tanto no sentido da ligação da libido às representações como da ligação a objetos. É essa ligação da energia que marca a presença de Eros que se torna possível através da presença da mãe que realizou a narcisização do bebê. (Castiel, 2019)
As referências aos aportes das ciências sociais acima citados conduzem a pensar que em uma cultura narcisista como a nossa, muitas vezes os objetos parentais estão narcisicamente ocupados consigo próprios e falham na sua função de narcisizar o filho. Nestas subjetividades, o conflito não se dá em relação ao desejo e sim em relação ao objeto que é traumático, como aponta Green. Traumático no sentido das falhas nas suas funções primordiais que implicam em maior ou menor escala que o sujeito se sinta ameaçado de destruição pelo objeto, com uma autonomia conquistada através de satisfações narcisistas, em detrimento de satisfações objetais; a constância do ser se equilibra em se defender de um objeto vivido como explorador o que implica pouca disponibilidade ao outro que nesse caso é vivido como hostil, invasivo ou indiferente do qual o sujeito se defende através de um fechamento narcísico.
As falhas redundam em um enredamento no narcisismo, indicando uma faceta negativa do mesmo. E é dentro desse contexto que Green (1993a) enuncia um narcisismo negativo que é uma aspiração a inexistência da excitação, um retorno ao zero, ao vazio, como uma tendência ao desligamento característico da pulsão de morte. Com isso, não há a possiblidade de conter a energia que passa a ser descarregada ao invés da ligação a objetos e representações, na contramão da capacidade ligadora do ego que não se torna espaço de continência.
O narcisismo negativo e o desligamento que este implica ainda que indique desinvestimento do objeto, não representa a separação entre sujeito/objeto necessária para a transformação do narcisismo, para a capacidade de pensar, para a instalação do princípio de realidade. A consequência é a de que o sujeito fica preso à destrutividade quer seja direcionada para si ou para o mundo externo.
Existem duas formulações de Freud a respeito da separação entre o ego e o objeto que se tornam importantes para uma compreensão da destrutividade. Em 1915, afirma que o bebê é indiferente ao mundo externo e tudo que não for bom é expulso por ele o que constitui o ego prazer purificado. Essa tendência é contemporânea à organização narcisista que se baseia na ilusão de que ele mesmo se satisfaz, há a indistinção sujeito e objeto já que a mãe faz parte do si mesmo e a estrutura enquadrante que ela proporciona permite ao bebê se identificar com essa capacidade de conter-se, de auto satisfazer-se através da alucinação e com isso ligar a libido às representações. Com isso, a ideia de que tudo que é bom faz parte de si e o que não é bom é expulso e torna-se indiferente. Posteriormente, as frustrações pontualmente causadas pela não satisfação pelo objeto, implicarão na decepção e no ódio para com o objeto que não satisfaz. Assim pode-se ver que nesta formulação, primeiramente há a indiferença com o mundo externo e o ódio aparece secundariamente; é expulso e em função disso ocorre a separação entre o sujeito e o objeto. No entanto, como o objeto que se odeia é o mesmo que se ama se recalca o ódio como forma de proteger o objeto amado. A frustração proporciona um objeto distinto do sujeito e a elaboração do ódio à mãe que frustra. Da mesma forma, a capacidade de pensar, pois, pensar o objeto implica a separação dele Estes aspectos são uma pré-condição para a instalação do princípio de realidade, mas tais formações psíquicas estão na dependência que tenha tido a mãe que realizou os cuidados maternos e que possa se constituir em um objeto amado e que indicaria o êxito na constituição da organização do narcisismo.
Por outro lado, a formulação de Freud de 1925, relacionada a separação sujeito/objeto, diz respeito a que tudo que é bom é incorporado e tudo o que é mau é expulso. Assim, o exterior é identificado com o que é estranho, odiado e mau, diferentemente da formulação de 1915 na qual o que era expulso se tornava indiferente. Nesse caso, a distinção entre bom e mau precede a de ego/objeto aqui o ódio é primário. Segundo Green (1993), a conceituação da pulsão de morte permitiu que essa diferença fosse feita nas postulações de Freud e permite pensar nas subjetividades nas quais a destrutividade em forma de crueldade ou masoquismo são componentes importantes. Dados os desencontros entre a mãe e o bebê e o desligamento que impede a retenção de marcas mnêmicas, não é possível a elaboração do ódio que se torna um elemento a ser descarregado em si próprio e no outro.
O diferente de mim converte-se em uma ameaça a ser combatida em função de um narcisismo e de uma identidade que se equilibra precariamente em algumas certezas que não podem ser confrontadas, é como se ao eliminar o outro se eliminasse o mal. Com isso, a capacidade de dar sentido aos afetos e de pensar se tornam diminuídas. Essas formações psíquicas quando levadas ao extremo levam a arrogância e a diminuição da condição humana do objeto o que é a essência do mal a que temos presenciado sobejamente em nosso tempo.
Referências bibliográficas:
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CASTIEL, S. (2013). Destrutividade e narcisismo. In: Sig revista de psicanálise. Porto Alegre, Ano 2, número 1.
CASTIEL, S. (2019). Narcisismo, pulsões e sexualidade: repercussões clínicas. São Paulo: Escuta.
ERNAUX, A. (2021). Os anos. São Paulo: Fósforo.
FREUD, S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. (1980). In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIV.
FREUD, S. (1915). Pulsões e seus destinos. (1980). In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIV.
FREUD, S. (1925). A negative. (1980). In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIX.
GREEN, A. (1993a). Narcisismo de vida, narcisismo de muerte. Buenos Aires: Amorrortu.
GREEN, A. (1993b). Por qué el mal? La nueva clínica psicoanalítica y la teoría de Freud: aspectos fundamentales de la locura privada. Buenos Aires: Amorrortu.
HADOT, P. (1976). Le mithe de narcise et son interpretation por Plotin. In: Nouvelle Revue de Psychanalyse. Número 13. Narcisisme. Paris: Gallimard.
LASCH, C. (1979). La cultura del narcisismo. Barcelona: Editorial Andrés Bello. (1999).
ROJAS, M. & STERNBACH, S. (1994). Entre dos siglos uma lectura psicoanalítica de la posmodernidad. Buenos Aires: Lugar Editorial.
SENNET, R. (!988). O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras.
Autora:
Dra.Sissi Vigil Castiel, Associação Psicanalítica de Porto Alegre/RS Brasil
Descritores: NARCISISMO / O NEGATIVO / DESTRUCTIVIDADE / O MAL
Directora: Lic. Meygide de Schargorodsky, Roxana
Directora Honoraria: Mirta Goldstein
Secretaria: Dra. Tripcevich Piovano, Gladis Mabel
Colaboradores: Lic. Felman, Fanny Beatriz, Dr. Corra, Gustavo Osvaldo
Los descriptores han sido adjudicados mediante el uso del Tesauro de Psicoanálisis de la Asociación Psicoanalítica Argentina
Presidenta: Dra. Rosa Mirta Goldstein
Vice-Presidente: Lic. Azucena Tramontano
Secretario: Lic. Juan Pinetta
Secretaria Científico: Dr. Marcelo Toyos
Tesorera: Dra. Mirta Noemí Cohen
Vocales: Lic. Laura Escapa, Lic. Jorge Catelli, Lic. Silvia Chamorro, Mag. Perla Frenkel, Lic. Gabriela Hirschl, Lic. Silvia Koval, Lic. Liliana Pedrón